Multipropriedade Imobiliária e a Lei 13.777/18

 

Para aumentar o número de pessoas que usufruem dos benefícios dos imóveis, o Direito precisa se valer de novas ferramentas jurídicas. A multipropriedade é uma delas e consiste em um condomínio compostos por unidades periódicas vinculadas a um mesmo bem. Com o advento da Lei 13.777, publicada em 21 dezembro de 2018, nosso ordenamento jurídico incorporou, finalmente, a multipropriedade imobiliária, também conhecida como time sharing, instituto jurídico há tempo conhecido e aplicado em outros países.

Trata-se de uma forma de uso compartilhado da propriedade, definido pelo artigo 1.358-C do Código Civil como “o regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada”, cuja implementação tem potencial de fomentar a procura por bens imóveis, sobretudo aqueles destinados a veraneio ou utilização esporádica. Consoante a dicção legal, é uma forma de condomínio aplicável apenas aos imóveis, em que há uma divisão temporal no aproveitamento exclusivo da titularidade do bem, sendo certo que cada fração de tempo de utilização do imóvel deve ser indivisível e de, no mínimo, 7 (sete) dias “seguidos ou intercalados” (art. 1.358-E). A fração de tempo poderá ser: (a) fixa e determinada, correspondente ao mesmo período de cada ano (ex. primeira semana de fevereiro, dias 10 a 16 de abril etc.); (b) flutuante, isto é, variável de tempos em tempos, respeitada a objetividade e a transparência do procedimento de escolha e o tratamento isonômico entre os diversos multiproprietários; ou (c) mista, isto é, combinando características do sistema fixo e do sistema flutuante.

Quanto a forma de instituição, segundo o disposto nos artigos 1.358-F a 1.358-H do diploma civil, dá-se por ato inter vivos ou por testamento, sendo indispensável o registro da fração de tempo à margem da respectiva matrícula. O ato de instituição deverá regulamentar os poderes e deveres dos multiproprietários; o número máximo de pessoas que podem ocupar simultaneamente o imóvel; as regras de acesso do administrador condominial ao imóvel; a criação de fundo de reserva para reposição e manutenção do imóvel; o regime aplicável em caso de perda ou destruição; bem como regular as multas aplicáveis aos multiproprietários em caso de descumprimento de seus deveres (art. 1.358-G). O instrumento de instituição poderá, ainda, prever uma fração de tempo destinada à realização de reparos indispensáveis ao normal exercício do direito de multipropriedade, atribuindo tal fração ao instituidor da multipropriedade ou, de forma fracionada, a cada um dos multiproprietários (art. 1.358-N).

A lei assegura a cada multiproprietário o direito de usar e gozar do imóvel, incluindo-se aí sua cessão ou locação no período de tempo correspondente à sua própria fração de tempo. Além disso, garante a cada condômino o direito de votar e de participar das assembleias gerais do condomínio em multipropriedade, sendo o voto proporcional à respectiva quota de fração de tempo, conquanto que esteja quite com suas obrigações (art. 1.358-I). Ainda em relação à possibilidade de votação em assembleia geral, a lei atribui tal prerrogativa aos promitentes compradores ou cessionários de fração de tempo (art. 1.358-K).

O multiproprietário pode, ainda, alienar e onerar sua fração de tempo de forma livre, devendo, contudo, informar tal fato ao administrador do condomínio em multipropriedade. Vale observar que a alienação da fração de tempo prescinde da anuência dos demais co-proprietários; tampouco se garante aos demais condôminos o direito de preferência, salvo disposição expressa no instrumento de instituição da multipropriedade imobiliária (art. 1.358-L).

A administração da multipropriedade é atribuída pela Lei 13.777 a um administrador, definido no instrumento de instituição do condomínio ou por meio de eleição em assembleia geral dos condôminos. Ao administrador, além das tarefas elencadas no próprio instrumento de instituição da multipropriedade, caberá: (a) coordenar a utilização do imóvel; (b) definir, nos sistemas de fração temporal variável, o período de uso de cada um dos multiproprietários; (c) manter e conservar o imóvel; (d) trocar ou substituir equipamentos ou mobiliário; (e) elaborar orçamento anual; e (f) cobrar as quotas de cada um dos coproprietários, pagando as despesas comuns (art. 1.358-M).

Importante anotação a ser feita é que a lei viabiliza a existência do condomínio edilício em regime de multipropriedade parcial (alcançando apenas algumas das unidades autônomas) ou total, desde que previsto no documento de instituição ou por deliberação da maioria absoluta de seus condôminos (art. 1.358-O). Nessa hipótese, a convenção de condomínio edilício deve, entre outras disposições especificar: (a) quais as unidades sujeitas à multipropriedade; (b) quais as frações de tempo de cada unidade; (c) qual a forma de rateio das contribuições condominiais, as quais serão, na ausência de previsão em sentido diverso, proporcionais à fração de tempo; (d) quais são as despesas ordinárias de rateio obrigatório; e (e) quais são os órgãos de administração da propriedade (art. 1.358-P).

O regimento interno do condomínio edilício em que houver multipropriedade deverá estabelecer regras relativas, dentre outros temas, à forma de utilização das áreas comuns pelos multiproprietários, bem como os direitos e deveres dos administradores com relação ao acesso ao imóvel, além das regras de convivência entre os multiproprietários e os ocupantes de unidades autônomas não sujeitas ao regime da multipropriedade, quando se tratar de empreendimentos mistos. A lei estabelece, ainda, que, nos condomínios edilícios em que todas as unidades se submeterem ao regime de multipropriedade, deverá haver um administrador profissional (art. 1.358-R), a quem caberá administrar também unidades autônomas dos condomínios em multipropriedade.

A lei prevê, finalmente, que, no caso de inadimplemento das despesas ordinárias e extraordinárias por parte do proprietário em multipropriedade, caberá a adjudicação ao condomínio edilício da fração correspondente na forma da legislação processual civil (art. 1.358-S). Já no caso de condomínios em multipropriedade voltados à locação de frações dos tempos por seus titulares (pool hoteleiro), o inadimplente poderá ser impedido de utilizar o imóvel até a quitação da dívida (art. 1.358-S, parágrafo único).

Ponto merecedor de atenção é a disposição contida no artigo 1.358-T, introduzido pela Lei 13.777 no Código Civil, cujo teor estabelece que “o multiproprietário somente poderá renunciar de forma translativa a seu direito de multipropriedade em favor do condomínio edilício”. Isso porque o dispositivo elege o condomínio edilício como destinatário exclusivo da chamada renúncia translativa, muito embora ele não se configure tecnicamente como pessoa jurídica, mas sim como ente despersonalizado. Mas não é só. Também porque o termo renúncia translativa, muito utilizado no âmbito do direito das sucessões, significa, tecnicamente, não uma renúncia propriamente dita, mas uma transferência de direito a outrem, e assim, não parece razoável e legítimo que o condômino possa renunciar translativamente à multipropriedade em favor do condomínio, mas não possa fazê-lo em favor de outro condômino, especialmente diante do disposto no parágrafo único do artigo 1.358-C, segundo o qual nem mesmo a reunião de todas as frações de tempo em um mesmo proprietário leva à extinção da multipropriedade.

Outro ponto de destaque é a necessidade de abertura de uma matrícula para cada fração de tempo, “na qual se registrarão e averbarão os atos referentes à respectiva fração de tempo”, conforme dispõe o § 10º do art. 176 da Lei 6.015/73, introduzido pela Lei 13.777. Na prática, cada unidade imobiliária é um imóvel autônomo, como sucede com as unidades no condomínio edifício. É o que reza o princípio da unitariedade matricial, segundo o qual cada imóvel tem de corresponder a uma matrícula. Também dá conta disso o fato de que uma mesma pessoa pode ser titular de todas as unidades periódicas relativas a um mesmo imóvel sem extinção do condomínio multiproprietário (art. 1.358-C, parágrafo único, CC).Portanto, a multipropriedade cria um direito de propriedade periódico a cada multiproprietário. Em outras palavras, o multiproprietário é titular de um direito real sobre coisa própria, porque titula um direito de propriedade com dimensão espaço-temporal.

Como consequência, o IPTU só recai sobre a unidade periódica. Logo, os demais multiproprietários não podem ser responsabilizados pela dívida de IPTU da unidade. O fato gerador do IPTU é o direito real de propriedade do imóvel periódico, e esse conceito é dado pelo Direito Civil, que tem de ser observado pelo Fisco, à luz do art. 110 do CTN. O Direito Civil trata a unidade periódica como imóvel autônomo e, portanto, um multiproprietário não pode ser compelido a responder pelo IPTU relativo à unidade periódica dos demais. Em confirmação disso, o art. 176, § 11, da LRP, permite que cada imóvel tenha uma inscrição imobiliária individualizada à luz da lei tributária municipal.Não há, pois, a solidariedade tributária de que trata o inciso I do art. 124 do CTN, ao contrário do insinuado na mensagem de veto parcial da nova lei. De fato, não há interesse algum de um multiproprietário em que os demais saldem o IPTU das suas unidades periódicas. No caso de inadimplemento, o Fisco poderá excutir a unidade periódica do devedor para quitação da dívida tributária, sem que isso prejudique os demais multiproprietários.